Música Que Faz Transcender – Parte 1

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Música Que Faz Transcender – Parte 1

“Onde é que você estava quando criei o mundo? Se você é tão inteligente, explique isso. Você sabe quem resolveu qual seria o tamanho do mundo e quem foi que fez as medições? Em cima de que estão firmadas as colunas que sustentam a terra? Quem foi que assentou a pedra principal do alicerce do mundo? Na manhã da criação, as estrelas cantavam em coro, e os servidores celestiais soltavam gritos de alegria. Jó 38.4-7 (NTLH)

No princípio, quando Deus criou o mundo a partir do nada, em meio ao profundo silêncio que imperava, o céu uniu-se à terra através de um maravilhoso cântico de louvor que estrelas e anjos faziam ecoar sobre a Criação. Essa foi a primeira manifestação sonora de louvor que o mundo via, e a partir dela a música passou a fazer parte integrante da vida humana no planeta, misteriosa e solidamente plantada no coração do homem.

E ele gradativamente foi incorporando às suas expressões musicais os sons copiados da natureza: o bramir do mar, o ribombar do trovão, o cicio do vento passando pelas folhas das árvores, os infinitamente variados cantos dos pássaros, o martelar staccato do bico do pica-pau no tronco, o suave arrastar de pés na vegetação rasteira, a batida ritmada do coração. Esses sons naturais constituíram-se em grande parcela da matéria-prima que é a base para a criação da música humana, permitindo a construção de linguagens musicais ricas e variadas que têm enlevado as almas de tantas pessoas através dos séculos, até os dias de hoje. Por isso, a estreita relação entre a música e a religião sempre esteve presente no seio da humanidade, como um elemento comum e significativo de todas as culturas, como veículo para a adoração e culto.

O grande violinista Yehudi Menuhin em sua obra A Música do Homem, escreveu: “O homem é, por definição, religioso e, pelo mesmo motivo, artista, porque está constantemente tentando transformar uma visão em realidade, um mistério em senso comum. Talvez ele jamais tenha êxito completo e, para encontrar seu equilíbrio interior, talvez precise aceitar suas limitações. Ao mesmo tempo, jamais deve perder a fé; jamais deve perder seu senso de pertencer a um propósito maior, a uma realidade mais ampla do que ele jamais poderá abranger. Fé, confiança e amor são sentimentos da mesma natureza e a música que chamamos de religiosa é votiva e, por conseguinte, tem muito em comum com amor e dedicação. A união desses sentimentos na música é que é realmente uma de suas glórias e uma de suas mais antigas funções”. Ainda na mesma obra, Menuhin afirma: “… é papel do músico manter nossa confiança no mundo e a confiança do mundo em nós, e ajudar-nos a expressar emoções autênticas. Quando a música assume essa responsabilidade, ela traz à tona o melhor esforço humano e é profundamente terapêutica, harmonizando o físico e o espiritual, o intelectual e o emocional, juntando corpo e alma”.

Há comprovações antropológicas que mostram que a música é a mais antiga das formas de expressão humana, tendo precedido a arte e a linguagem, e tem o dom de tocar-nos profundamente, mais do que a maioria das palavras. O homem primitivo, exposto à natureza ameaçadora, já cantava, tanto para lutar contra o medo, quanto para imitar os sons que ouvia. Mais tarde esse canto transformou-se em linguagem, necessária para comunicar-se com os semelhantes, o que resultou em uma espécie de poesia cantada, que evoluiu então para as primeiras canções, com caráter de louvor a divindades, de crônicas de acontecimentos passados e de encorajamento. Assim a música assumiu um caráter de expressão sonora empregada não só para estimular a tribo para as batalhas, como para produzir uma espécie de magia capaz de proporcionar êxtase, dessa forma demostrando seu grande poder.

Pesquisas arqueológicas têm mostrado que séculos antes de Cristo a produção musical humana já era abundante e de qualidade, mas como nunca foi escrita, não pode ser reproduzida nos dias atuais. Sua forma de transmissão era oral, e uma vez que sua essência era a improvisação que objetivava a meditação, não era necessário que as obras criadas fossem anotadas, e foi assim com a cultura musical na Índia, no Egito, na China e na Suméria. Na Grécia antiga a música dominava a vida religiosa, estética, moral e científica, mas também tinha fins terapêuticos, acreditando-se que cada escala ou tom provocava um determinado efeito em quem ouvia – bom ou mau – mas o registro escrito era desaconselhado, acreditando-se que prejudicava a memória.

Mas foi o cristianismo o agente propagador da música por toda a Europa, especialmente a partir da decretação do Édito de Milão, em 313 d.C.,  quando os imperadores Constantino e Licínio concederam liberdade de consciência e de culto a todas as religiões e restauraram as propriedades dos cristãos, que haviam sido confiscadas. No entanto, tal difusão só se consolidou definitivamente quando o imperador Flávio Teodósio, em 380 d.C., decretou o cristianismo religião oficial do Império Romano pelo Édito de Tessalônica. Daí em diante, a música litúrgica da Igreja Cristã, ao difundir-se por todo o Império, foi sendo influenciada pelas formas musicais das regiões onde a nova fé se estabelecia e, ao incorporar elementos tradicionais, sagrados e profanos, deu origem a diversas variantes da música de culto cristã.

Qual é o verdadeiro propósito da música? Fundamentalmente glorificar a Deus, que a criou para direcionar nossa adoração a Ele, proclamando a Sua grandeza, exaltando a Sua majestade, anunciando a Sua justiça e a salvação. Depois do advento de Jesus Cristo, a música que pretende provir de Deus e denominar-se música cristã, ao considerar que o Filho é o único mediador entre o homem e o Pai, é aquela que busca a adoração a Deus por meio de Cristo, honrando-O, glorificando-O e ajudando-nos a falar dEle  aos perdidos.

A Igreja Cristã, que começou com uma pequena e perseguida congregação de judeus e prosélitos (recém convertidos) de quinze nações que formavam um círculo em torno mar Mediterrâneo, inicialmente continuavam a frequentar as sinagogas e o Templo de Jerusalém, como o próprio Jesus havia feito, e assim presume-se que continuavam a manter as mesmas tradições musicais, provavelmente utilizando um dos registros mais extraordinários da música judaica, que eram os Salmos de Davi.

Nos Evangelhos, o único registro de música comunal que existe está em Mateus 26.30 quando, após transformar sua última refeição pascal na instituição da Ceia do Senhor, Jesus deixou o recinto onde se reunira com os onze discípulos, “E, tendo cantado um hino, saíram para o monte das Oliveiras”. Nas Cartas de Paulo, também há referências ao uso de salmos, hinos e cânticos espirituais em Efésios 5.19 ( falando entre vós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais…), e em Colossenses 3.16 (…instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração).

Outra menção da música entre os cristãos primitivos fez Plínio, o Moço, governador imperial da Bitínia de 111 a 112 d.C., em uma carta escrita ao imperador Trajano, pedindo conselhos sobre o que fazer com os cristãos em sua região, pois costumavam se reunir antes do nascer do sol para louvar a Jesus por meio de um canto antifonal, ou seja, um canto gregoriano consistindo na alternância de vozes entre dois grupos corais. O historiador Sócrates de Constantinopla afirma que esse tipo de canto no culto cristão foi instituído pelo bispo Inácio de Antioquia, discípulo do apóstolo João que, em uma visão que teve, viu anjos cantando em coros alternados.

Tendo vivido na segunda metade do século IV e primeira do V, Agostinho de Hipona afirmava em latim “qui cantat, bis orat”, que significa “cantar uma vez é como orar duas vezes”, sugerindo que a força da oração musicada, ou seja, do canto louvando a Deus, duplica o poder da oração simplesmente pronunciada.

Se o uso do aparelho fonador para o louvor divino sempre foi, e continua a ser inquestionável, a tentativa do emprego de instrumentos na música do cristianismo primitivo, ao que se sabe, não prosperou, o que se pode deduzir das palavras de Jerônimo de Estridão, teólogo e historiador do final do século V e início do VI, que escreveu que “uma donzela cristã não deveria sequer saber como se parecem uma lira ou uma flauta, ou para que servem”, e assim, pelo que se tem notícia, somente no século VII se deu a introdução do órgão nas cerimônias religiosas cristãs.

(Continua…)

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