Martinho Lutero – Uma Santa Inquietação

,

Martinho Lutero – Uma Santa Inquietação

Lutero nasceu em 10.11.1483 e durante sua vida, entre 1483 e 1546, se produziram mudanças e transformações muito importantes no mundo: Colombo, Magalhães e Vasco da Gama ampliam os horizontes geográficos do mundo conhecido; a economia monetária se impõe por toda parte, e o capitalismo começa a crescer. A nobreza é superada pela burguesia. O individualismo se afana em arraigar-se, ensejando a livre contratação, a iniciativa privada e a liberdade de trabalho; Copérnico demonstra que a terra gira em torno do sol. Tem lugar o movimento humanista, com a queda da filosofia e teologia escolástica, dominantes na Idade Média e a Reforma tem lugar na ocasião precisa em que o cristianismo começava a propagar-se pelas terras da América.

Em 17 de julho de 1505, por convicções espirituais profundas, Lutero ingressa no monastério dos agostinianos mendicantes de Erfurt, Saxônia, ordem das mais severas. “Eu fui um monge piedoso e observei as regras monásticas tão severamente que se alguma vez um monge há chegado ao Céu por sua qualidade de monge, eu muito bem houvera podido chegar. Todos meus companheiros de claustro, que me conheceram, podem atestá-lo. Se tal coisa houvera durado mais tempo, me haveria matado à força de vigílias, jejuns, flagelos, torturas do corpo, trabalhos forçados e outras práticas piedosas”. Mas foi então que aquele agostiniano começa a grande peregrinação espiritual que o transformará em profeta do Altíssimo. A primeira jornada tem lugar quando Lutero compreende que, por meio de tais práticas piedosas a que se submetia naquele monastério, estava tratando de fazer, por si mesmo, o que Jesus Cristo há havia feito por ele na cruz. Lendo Romanos 1, as palavras do versículo 17 “O justo viverá pela fé”, adquirem um novo sentido para ele. “Imediatamente me senti renascer, me pareceu então haver entrado pelas portas abertas do Paraíso. Desde então a Biblia, toda inteira, tomou uma aspecto novo ante meus olhos”. Este descobrimento, esta intuição de sua da justificação pela fé, é o fato mais significativo na vida deste servo de Deus. Aquele monge que por muitos anos havia vivido atormentado pelo peso de seu pecado, adquire agora a segurança de sua salvação pessoal. Isto ocorreu 4 anos antes da fixação das 95 teses contra as indulgências.

Tendo sido ordenado sacerdote a 27 de fevereiro de 1507, Lutero celebrou sua primeira missa a 2 de maio do mesmo ano, ato para o qual seu pai compareceu com um cortejo de 20 convidados, reconciliando-se com o filho. “Bem quis eu ser monge santo e zeloso, e com grande devoção preparei-me para a primeira missa e a oração. Mas, por mais devoto que eu fosse, me dirigia ao altar com dúvidas, duvidando me afastava, entravado pela ilusão de que não poderíamos orar nem seríamos ouvidos se não fôssemos absolutamente puros e sem pecado, como os santos do céu.”

Ainda como professor de Teologia, Lutero era atormentado por dúvidas quanto à faculdade humana de tornar-se justo perante Deus mediante as boas obras. Mas, em 1513, dedicado ao estudo bíblico em sua cela no Convento Negro dos Agostinianos onde morava, reconheceu de repente o infinito alcance da verdade do Evangelho:“’Concluímos pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei’ (Romanos 3.28). Agora eu considerava a escritura Sagrada de maneira diferente, e tornei-me alegre, como que renascido, sim, como se tivesse entrado pelos portais abertos do próprio paraíso.“

Por isso, pôde Lutero escrever numa carta em 1516: “Estuda o Cristo, a saber, o crucificado. Aprende a lhe cantar louvores, desesperando em ti próprio e dizendo: Tu, Senhor Jesus, és minha justiça, mas eu sou teu pecado. Leste sobre ti o que era meu e deste a mim o que é teu.”

Sua conversão definitiva aconteceu em 1616/17, sobre a qual ele escreveu o seguinte: “Ainda que como monge, eu levasse uma vida irrepreensível, sentia que era um pecador perante Deus, e tinha um consciência extremamente perturbada. Não podia acreditar que Deus era aplacado com as satisfações que eu lhe dava. Eu não amava, mas sim, odiava a justiça de Deus que pune pecadores e, secretamente, se não como blasfêmia, com certeza murmurando muito, estava irado contra Deus e disse: ‘Como se não bastasse que miseráveis pecadores, eternamente perdidos por causa do pecado original,  sejam esmagados por toda espécie de calamidades pela Lei do Decálogo, Deus tivesse de acrescentar dor em cima de dor pelo Evangelho, e também com o Evangelho nos ameaçando com sua ira justa!’ Deste modo eu me irava, com uma consciência furiosa e perturbada. Todavia, persistentemente golpeava aquela passagem de Paulo, querendo ardentemente entender o que ele quis dizer com ‘a justiça de Deus’. Finalmente, pela misericórdia de Deus, meditando de dia e de noite, consenti ao contexto das palavras, a saber: ‘Porque no Evangelho é revelado a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’. Então comecei a entender (que) a justiça de Deus é aquela pela qual o justo vive por um dom de Deus, em outras palavras, pela fé. E  este é o significado: no Evangelho, é revelada a justiça de Deus, isto é, a justiça passiva com a qual  Deus misericordioso justifica-nos pela fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’. Foi quando senti como se tivesse nascido de novo e entrado no paraíso por portões abertos. Aqui, me foi mostrada uma face completamente diferente da Escritura. Com base nisso, percorri outra vez, de memória, os textos das Escrituras (…) E exaltei minha palavra amabilíssima com um amor tão grande quanto o ódio com o qual antes havia odiado ‘a justiça de Deus’. Portanto, aquela passagem em Paulo tornou-se para mim verdadeiramente o portão para o paraíso”.

Quando meditava sobre as Escrituras, Lutero muitas vezes esquecia-se das refeições. Quando estava escrevendo o comentário sobre o Salmo 23, passou três dias no quarto comendo somente pão e sal. A esposa precisou chamar um serralheiro para quebrar a fechadura, e acharam-no escrevendo, mergulhado em pensamentos e esquecido de tudo o que o rodeava. Lutero também tinha o costume de orar durante horas a fio. Dizia que, se não passasse duas horas orando de manhã, receava que satanás fosse vitorioso sobre ele durante o dia. Certo biógrafo escreveu a seu respeito: “o tempo que ele passa em oração produz o tempo para tudo o que faz. O tempo que passa com a Palavra vivificante enche-lhe o coração até transbordar em sermões, correspondência e ensinamentos”. De todos os livros que escreveu, o favorito de Lutero era o Catecismo Menor, de 1529, que, com perguntas e respostas simples, explicava os Dez Mandamentos, o Credo dos Apóstolos e a Oração do Senhor, além de alguns princípios para a vida cristã à luz do seu entendimento do Evangelho. No prefácio, ele escreveu: “Faço como criança a quem se ensina o Catecismo: de manhã, e quando quer que tenha tempo, leio e profiro, palavra por palavra, o Pai-Nosso, os Dez Mandamentos, o Credo, alguns salmos, etc. Tenho de continuar diariamente a ler e estudar, e, ainda assim, não me saio como quisera, e devo permanecer criança e aluno do Catecismo. Também fico prazerosamente assim. Existe multiforme proveito e fruto em ler e exercitá-lo todos os dias em pensamento e recitação. E o Espírito Santo está presente com esse ler, recitar e meditar, e concede luz e devoção sempre nova e mais abundante, de tal forma que a coisa de dia em dia melhora em saber e é recebida com apreço cada vez maior”.

A oração que Lutero usou continuamente durante os últimos 16 anos de sua vida, resulta em um claro testemunho de sua fé, de sua confiança: “Senhor Deus, Tu vês quão inepto eu sou para cumprir tão grande e difícil missão, e se eu houvesse intentado, sem contar contigo desde logo, haveria deixado tudo a se perder. Por isso clamo a Ti. De bom grado quisera oferecer minha boca e dispor meu coração para este mister. Desejo aprender eu mesmo continuamente e manejar tua Palavra, havendo-lhe  meditado com diligência como instrumento teu. Utiliza-me amado Senhor, não me abandones de modo algum, pois donde eu estiver sozinho, facilmente o faria tudo a perder.“

A 31 de outubro Lutero afixou as 95 Teses à porta da Igreja do Castelo em Wittenberg. Em 1524 foram publicados 24 hinos escritos por ele, bem como o livro dos Salmos em alemão. O ano de 1527 trouxe a Lutero muito sofrimento de corpo e de alma, acompanhado de dúvidas quanto à sua missão. Nesta época compôs o hino mais conhecido da Reforma: “Deus é castelo forte e bom… Se inúmeros demônios vem… O Verbo eterno vencerá…”. Em 1530, enquanto em Augsburgo se realizava outra Dieta para julgar a questão evangélica, Lutero, excomungado e proscrito, não pôde lá comparecer. A causa da Reforma foi defendida por seu auxiliar e amigo Filipe Melanchton. Foi ele quem redigiu e entregou na Dieta a Confissão de Augsburgo por Lutero. Enquanto isso, ele próprio permaneceu no Forte Coburgo, onde escreveu na parede um versículo do Salmo 118, muito estimado por ele:“Não morrerei; antes viverei, e contarei as obras do Senhor”. Um dos fatos dos mais importantes para a consolidação da Reforma foi a publicação da Bíblia inteira em língua alemã em 1534.“Agora tendes a Bíblia em alemão, quero terminar de trabalhar, pois tendes o que deveis ter. Contudo cuidai de usá-la devidamente depois de minha morte. Não a percais, lêde-a com zelo e sob temor de Deus e oração. Pois se ela fica florescendo e é usada corretamente, tudo está bem e se desenvolve de maneira feliz.”

Em 1542 grande luto envolveu o lar de Lutero quando, com a idade de 13 anos faleceu sua filha Leninha.“Amo-a tanto; mas, querido Deus, se for de tua vontade, de bom grado quero sabê-la junto de ti. Querida esposa pensa só para onde ela vai. Querida Leninha, haverás de ressuscitar e brilhar como uma estrela, sim, como o sol.”

Os últimos três anos de sua vida foram repletos de trabalho, pressentimentos de morte e cuidados com o destino do Evangelho e de sua pátria. Em fins de janeiro de 1546, acompanhado por três filhos e seu amigo Justo Jonas, Lutero viajou para Eisleben a fim de conciliar os nobres de Mansfeld num conflito sobre a cidade de Neustadt, e os debates estenderam-se até 17 de fevereiro. Lutero pregava aos domingos em sua cidade natal, na Igreja de Santo André, onde em sua última prédica sobre Mateus 11.25-30, disse. “Isto e muito mais teria a dizer sobre este Evangelho, mas estou por demais debilitado. Que isto baste.” Sua última oração foi : “Meu amado Pai celestial, Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Deus de toda consolação, agradeço-te por me teres revelado teu amado Filho Jesus Cristo, no qual tenho fé, o qual foi por mim pregado e testemunhado, ao qual amei e rendi louvores. Rogo-te, meu Senhor Jesus Cristo, toma sob teus cuidados minha pobre alma. Oh! Pai celestial, se bem que devo deixar este corpo e ser arrebatado desta vida, sei com certeza que eternamente poderei ficar contigo e ninguém poderá arrebatar-me de tuas mãos. Amém.

Martinho Lutero faleceu na madrugada de 18 de fevereiro de 1546 em Eisleben. Nos seus instante finais, perguntou-lhe Justo Jonas: “Reverendo pai, quereis perseverar em Jesus Cristo e na doutrina como a pregaste?” Lutero respondeu claramente: “Sim”. Adormeceu 15 minutos depois com um profundo suspiro. Trasladado para Wittenberg, Martinho Lutero foi sepultado a 22 de fevereiro de 1546 na Igreja do Castelo, ao lado do púlpito onde tantas vezes pregara, e em cujas portas havia fixado suas teses, dando início à Reforma.“Os corpos dos cristãos descansam na sepultura e dormem até que venha Cristo e bata no túmulo dizendo: ‘Acorda, levanta, Martinho Lutero, e vem cá pra fora!’ Haveremos de ressuscitar em um momento, como de um sono suave e agradável, para viver com Cristo, o Senhor, em eterna alegria.”

Share
Nenhum comentário

Publicar um comentário