HIPOCRISIA

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HIPOCRISIA

Século após século a história tem nos mostrado que há uma característica humana que parece imutável, inalterável, resistindo incólume ao assim denominado “progresso” da humanidade: é a hipocrisia, de que nossa época tem sido pródiga em inovações, como as denominadas fake-news, que não são mais do que expressões tecnologicamente atualizadas dos tão conhecidos e imemoriais boatos. Propagados notadamente pelas mídias sociais, procuram falsear fatos para conseguir enganar com o fim de auferir ganhos financeiros ou políticos.

 

O termo hipocrisia (hupokrisis) era empregado na Grécia antiga quase como sinônimo do que nos dias atuais denominamos a representação de um ator, ou seja, o agir proposital de maneira simulada, por atos e palavras expressando, não o que a pessoa realmente pensa e sente, mas sim aquilo que ela pretende que sua plateia seja convencida a crer, ao fingir ter crenças, virtudes, ideias e sentimentos que na realidade não possui.

 

Hipocrisia, assim sendo, é dissimulação, falsidade, mentira, caracterizando-se por isso como uma atitude que Deus abomina porque deseja que sejamos como Ele, entre cujos atributos comunicáveis que possui estão a verdade, a justiça e a retidão. O hipócrita escamoteia suas falhas para parecer melhor do que é, quando o correto perante Deus e os homens seria reconhecer seus erros, buscar o perdão dos ofendidos e reajustar sua trajetória de vida. Mas a personalidade do hipócrita faz com que se limite a ser um rígido juiz das faltas alheias, porém muito complacente para com seus próprios desacertos, e infelizmente há também muitos cristãos hipócritas que dizem seguir a Deus, mas são contumazes transgressores da Sua Palavra, que afirmam entregar tudo a Ele, mas que na realidade preferem confiar em suas parcas capacidades humanas.

 

Ser hipócrita, portanto, é pretender ser algo que não se é, sem ter a intenção de sê-lo, é dar mais importância à reputação que ao caráter, é cumprir com rigor determinadas liturgias na igreja, porém mantendo o coração longe de Deus, é enaltecer a si próprio comparando suas supostas virtudes com alegados pecados alheios.

 

Apesar de tudo isso, o Senhor está sempre pronto a perdoar aqueles que se voltam a Ele contritos, condenando, no entanto, os irredutíveis, como mostram duas passagens bíblicas envolvendo dois casais e mil anos de distância no tempo uma da outra, a primeira de Davi e Bate-Seba em 2 Samuel 11.1-4,6 e a segunda de Ananias e Safira em Atos 5.1-11.

 

Davi, culpado de adultério e assassinato, tempos depois dos pecados cometidos, no Salmo 51, em meio a profundo sofrimento reconhece seu erro, manifesta profundo arrependimento, confessa com sinceridade sua culpa, e suplica a Deus por perdão e restauração. E, apesar do terrível pecado cometido, Davi foi cognominado “um homem segundo o coração de Deus”, e o Senhor jamais o abandonou, ao contrário, permitiu que de sua descendência nascesse Jesus, o Salvador do mundo. Deus é justo, porém conhecedor da fraqueza humana, e uma vez que Davi confessou seu pecado e se arrependeu, foi perdoado, assim como nós mesmos somos frequentemente, e apesar de sermos transgressores contumazes, se nos arrependermos Ele também nos perdoa e nos usa para Seus divinos propósitos.

 

Ananias e Safira, no entanto, foram protagonistas de um terrível e instantâneo juízo divino por sua atitude hipócrita quando tentaram enganar a Deus, e mesmo sendo confrontados com a verdade, continuaram inflexíveis não admitindo sua falsidade nem mostrando arrependimento.

 

Deus abomina todo tipo de mal e de desobediência aos Seus mandamentos e ordenanças, mas parece indignar-se sobretudo com a hipocrisia, em especial manifestada entre pessoas que se consideram religiosas, como os escribas e fariseus em João 5.15-18, quando sua cegueira os fez interpretar um ato de misericórdia de Jesus como um crime que deveria ser punido com a morte.

 

O diabo é o maior hipócrita que já existiu e age até hoje desde tempos imemoriais naqueles que dão azo às suas investidas, como Jesus acusou os judeus que com Ele debatiam em João 8.44, dizendo: “Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira”.

 

Portanto, aquele que pretende ser um verdadeiro, autêntico cristão, afastando-se e protegendo-se contra a hipocrisia, deve cuidar com quem anda, o que escuta, o que pensa, a quem dá crédito, atento lembrando que só quem caminha com Deus, tendo Jesus Cristo no coração, consegue resguardar-se das investidas do mal, podendo então agir invariavelmente com sinceridade inabalável, doa a quem doer, custe o que custar, fazendo suas as palavras de Paulo em 2 Coríntios 1.12: “Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência, de que, com santidade e sinceridade de Deus, não com sabedoria humana, mas, na graça divina, temos vivido no mundo…”.

 

E como nos certificarmos de que nós mesmos não estamos, – ainda que inconscientemente, porém agindo de forma automatizada, emocional e impensada, – sendo hipócritas? Observemos um indicativo importante: aquele que é sincero, preocupa-se em não agir com falsidade, enquanto que o que é falso nunca duvida de sua sinceridade.

 

Por isso devemos lembrar de Lucas 12.1 quando “… passou Jesus a dizer, antes de tudo, aos seus discípulos: Acautelai-vos do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”, advertindo Seus discípulos para que se acautelassem contra essa abjeta distorção de conduta que se manifesta quando as pessoas aparentam bondade, seus lábios parecem justos, mas seus corações se acham longe de Deus.

 

Jesus prossegue em Sua admoestação e no verso seguinte complementa categórico, mostrando que a hipocrisia não é duradoura, pois “Nada há encoberto que não venha a ser revelado; e oculto que não venha a ser conhecido”. Porque, tal como os fariseus da época de Jesus, aqueles que são falsos nos dias atuais jamais conseguirão manter suas más atitudes ocultas por muito tempo. O egoísmo de que padecem cresce como levedura e não demora muito externam o que na verdade são: impostores famintos por poder, mentirosos contumazes que só visam os próprios benefícios.

 

Sabemos que ser verdadeiramente cristão é seguir a Cristo em qualquer circunstância, tempo ou lugar, procurando imitá-lO, e que o autêntico cristianismo é absolutamente imutável. Mas será que nós mesmos, que nos consideramos autênticos cristãos, agimos como Ele e o nosso cristianismo não está sujeito a alterações circunstanciais? Será que, além disso, somos rigorosos com os outros todavia indulgentes com nós mesmos? Será que precisamos tirar primeiro a trave do nosso olho para ver claramente e assim poder tirar o argueiro do olho do nosso irmão? Se assim for, somos hipócritas, e devemos rogar a Deus para nos tornar sinceros a todo tempo.

 

Charles Spurgeon, em seu livro A Hipocrisia, consistindo em um sermão por ele ministrado no dia 6 de fevereiro de 1859, afirmou: “O verdadeiro cristão, quando vê o pecado, chora sobre ele e faz muito barulho a respeito dele. Ele diz para o outro: ‘Oh, eu me sinto tão pecador.’ O hipócrita não responderá: ‘Eu realmente não posso vê-lo. Eu não posso ver o pecado em você. Eu gostaria de ser santo como você.’ Não, o espírito do hipócrita é inverter, é julgar e condenar, é punir com linchamento todos os outros homens, mas para si mesmo ele sempre será santo. Ele é um rei, e no sono da consciência permite facilmente os próprios pecados que condena nos outros! Esta é uma marca muito proeminente do hipócrita! De todos os pecados, acho que o mais terrível é o do hipócrita. Pois, após a morte, ele levantará os olhos e encontrar-se-á perdido para sempre. Verifique a sua vida. Que Deus lhe dê verdadeira graça e fé e que todos nós nos encontremos no céu. Esta é a minha fervorosa oração, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém! ”

 

Nicolau Maquiavel, filósofo, historiador, poeta, diplomata e músico do Renascimento, autor do conhecido livro O Príncipe, e reconhecido como fundador e pensamento e da ciência política moderna, ao discorrer sobre as técnicas hipócritas que o poder empregava em sua época, não as considerava um atributo do falso político, como hoje assim julgamos, mas sim como um recurso a ser utilizado para parecer bondoso, humano, piedoso, íntegro e honesto, mesmo estando longe de o ser.

 

Ele dizia que é próprio da arte política a utilização de manobras como ressaltar os benefícios feitos e encobrir os próprios erros, sempre atribuindo a outros todas as decisões equivocadas, reservando para si próprio as conquistas, e empregando todos os meios imagináveis para conservar o poder. A hipocrisia, nesse contexto, torna-se um instrumento poderoso a ser utilizado pelos governantes no jogo do poder, a fim atingir seus objetivos. Não é difícil compreender, portanto, porque os políticos, com raras exceções, são os seres mais hipócritas que existem na face da terra, inspirando o famoso moralista francês La Rochefoucault a cunhar a célebre frase “A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”.

 

É notável também constatar que Maquiavel fez discípulos de tal forma fiéis que, passando de geração a geração, perduram até os nossos dias. Basta ligarmos a TV, o celular, o rádio, o computador, e lá estarão os políticos que cultuam e cultivam os princípios maquiavélicos da hipocrisia para se beneficiarem em suas carreiras, acusando os opositores com veemência como se nenhum deles tivesse “telhado de vidro”, e os acusadores fossem puros e imaculados como recém nascidos.

 

Desconhecem, propositada e espertamente a dura repreensão que Jesus fez aos hipócritas escribas e fariseus no primeiro século de nossa era, em Mateus 23.27-28, e que se aplicam com perfeição a eles mesmos passados vinte séculos: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia! Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniquidade”.

 

Senhor Deus justo, compassivo e longânimo que nos criou para sermos Teus filhos dignos de tal privilégio, guarda-nos dos males da hipocrisia e ajuda-nos a ser como Paulo orou pelos filipenses para que fossem “… sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração pervertida e corrupta, na qual resplandeceis como luzeiros no mundo, cheios do fruto de justiça, o qual é mediante Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus”. No nome santo de Jesus. Amém.

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