Por Roberto Oliveira
Nos últimos tempos ficou muito fácil (e talvez prazeroso) ter uma vida secreta. Os computadores propiciam quase total privacidade. As metrópoles propiciam anonimato. As instituições protegem o sigilo individual, desde bancos a motéis, como direitos constucionais. As liberdades individuais são (e devem ser) defendidas com unhas e dentes pela sociedade democrática e pluralista do ocidente. Desde a promulgação da constituição americana (1787), vivemos a era da felicidade individual, do individualismo narcisista. Narciso não sabia, mas adorava a sua própria face, uma experiência individual privada. Como sabem da mitologia greco-romana, esta experiência foi tão forte e determinante para ele que definhou e morreu contemplando a sua própria face refletida nas águas de um poço.
Com isto, podemos ser e fazer coisas sem o conhecimento público, sem prestar contas a ninguém: só eu sei e controlo. Isto permite cultivar vários tipos de desejos interiores que podem se perpetrar em ações ou ficar somente no campo das fantasias. Estes prazeres individuais podem tomar dimensões enormes, e vir a mover nossa vida tanto para o bem como para o mal. Podemos cultivar prazeres secretos de tal forma que vivemos ansiosos por desfrutá-los como um vício.
À medida que você lê esta megatendência da individualidade secreta, já pode perceber que estamos diante de uma realidade tentadora de vivermos um personagem externo e outro interno. Como diz psicólogo cristão suíço Paul Tournier, um “personagem e uma persona”. Como é de se imaginar, isto pode criar uma dicotomia perigosa, onde o personagem externo é amoldado a expectativas do meio, enquanto a persona interna se desvia a todo o tipo de fantasias, ambições, lascívias e luxúrias, criando um conflito pessoal enorme.
Perfeito entendedor da natureza humana, Jesus se referiu à vida secreta de maneira positiva: falando de oração, ele recomenda que nos recolhamos na individualidade privada do nosso quarto, fechemos a porta, oremos “a seu Pai, que está em secreto”. A surpresa desta narrativa é que “o seu Pai, que vê em secreto, o recompensará” (Mateus 6:6), isto é – Ele tem acesso completo ao nosso secreto – tudo o que na intimidade pensamos, imaginamos, fantasiamos e sentimos. Que delícia!
Também entendedor da fraqueza humana, Jesus também se refere ao lado negativo desta possível dicotomia, quando vergasta os fariseus chamando-os de “sepulcros caiados” – por fora muito ajeitados, pintados, bonitos, mas por dentro cheios de matéria em decomposição e ossos (Mateus 23:27). Aí está um perigo que se tornou maior nos últimos tempos – uma completa desarmonia entre o secreto e o social, o privado e o externo, a persona e o personagem. Isto representa a miséria humana carregada de falência, mentira e dissimulação. É a tentação do século.
Reconhecendo esta incrivelmente atrativa tendência à hipocrisia, o filósofo e teólogo Agostinho (354 a 430 DC) no norte da África pregava do púlpito os seus pecados, e os confessava públicamente. Sua maior obra, “Confissões” era justamente a busca da harmonização da vida secreta com a pública, e se tornou um clássico tanto da teologia cristã como da literatura mundial. Se algum pastor fizesse isto hoje, talvez o conselho se reunisse e o despedisse. Mas ele o fez ousadamente, e a muitos inspirou a revelar o interior lascivo de tal forma a tratá-lo como objeto da graça incondicional de Deus.
O que Deus deseja é integridade no íntimo. Depois que Davi deu asas a seus desejos íntimos – adulterando com Bate-Seba e matando seu esposo – confrontado pelo profeta Natã, chegou a esta verdade revolucionária, expressa em belo Salmo de confissão: “Eis que desejas que a verdade esteja no íntimo; faze-me, pois, conhecer a sabedoria no secreto da minha alma” (Salmo 51:6). Esta é uma verdade revolucionária porque é o mais íntimo, mais pessoal e mais secreto que revela a força da vida de uma pessoa. Íntimo integro, muita força. Íntimo dissonante, fraqueza.
É por isto que Davi nesta experiência grita com toda veemência e fervor: “Purifica-me com hissôpo (planta medicinal da família das Labíadas, que era usada para purificar os leprosos), e ficarei puro. Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável (Salmo 51:7,10).